FUNDAMENTOS JURÍDICOS DO MARCO CIVIL

FUNDAMENTOS JURÍDICOS DO MARCO CIVIL

Art. 3° A disciplina do uso da internet no Brasil tem os seguintes princípios:
I – garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento, nos termos da Constituição Federal;
II – proteção da privacidade;
III – proteção dos dados pessoais, na forma da lei;
IV – preservação e garantia da neutralidade de rede;
V – preservação da estabilidade, segurança e funcionalidade da rede, por meio de medidas técnicas compatíveis com os padrões internacionais e pelo
estímulo ao uso de boas práticas;
VI – responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades, nos termos da lei;
VII – preservação da natureza participativa da rede;
VIII – liberdade dos modelos de negócios promovidos na internet, desde que não conflitem com os demais princípios estabelecidos nesta Lei.
Parágrafo único. Os princípios expressos nesta Lei não excluem outros previstos no ordenamento jurídico pátrio relacionados à matéria ou nos tratados
internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
I – DOUTRINA
A disciplina no uso da internet? Disciplina, no dicionário Houaiss, tem várias acepções.1 O legislador escolheu
esse termo no sentido de regulamento para o bem-estar social. Entretanto, tal acepção é falha e totalmente incoerente
com a ideia de princípios a qual o artigo deveria fomentar. Regulamento de princípios sem construção e delineamento
das práticas que os significam é meramente uma indicação de algo dissonante da realidade. Este caput já aponta os
problemas axiológicos trazidos nos incisos abaixo e na conceituação equivocada de internet, tal como trazida
anteriormente.2
A simples enumeração de princípios repetidos do que já foi instituído constitucionalmente é mera repetição sem
contextualização com as práticas do que deveria a legislação pensar sobre qual internet ela quer para o país.
Disciplinar a internet não é somente dizer que se resguardará a proteção da privacidade. De qual privacidade estamos
falando se não há uma lei de proteção de dados no país? A privacidade a ser garantida envolve questões de segurança
de informação com a permissão de todos os usuários de internet terem acesso a criptografia de dados sem controle
estatal? Quais são os limites para a formação de banco de dados dos entes federativos?
Disciplinar a internet sem apresentar aos cidadãos qual é o objetivo a se alcançar é apenas algo sem função ou
sentido. Por isso, nas análises dos próximos incisos, a despeito dos silêncios existentes no Marco Civil, buscar-se-á
caminhos para preenchimento destas lacunas.
Inciso I
Liberdade de Manifestação do Pensamento e de Expressão. A disciplina do uso da internet no Brasil deve
garantir a liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento, tal como determina a Constituição. Se
já existe esta determinação na Constituição por quê repeti-la na lei infraconstitucional? Qual é o sentido? Devemos
caminhar a interpretação em busca do que já foi construído ou estamos buscando algo novo? O objetivo desse trabalho
é atualizar esses princípios a novas práticas de uma sociedade totalmente diversa daquela de 1988.

Assim, na exegese do que propõe o Marco Civil, deve-se analisar a liberdade de expressão, como “o direito de
externar ideias, opiniões, juízos de valor, em suma, qualquer manifestação do pensamento humano”.3 José Afonso da
Silva aprofunda, citando Pimenta Bueno:
“O homem porém não vive concentrado só em seu espírito, não vive isolado, por isso mesmo que por sua natureza é um ente social. Ele tem a viva
tendência e necessidade de expressar e trocar suas ideias e opiniões com os outros homens, de cultivar mútuas relações, seria mesmo impossível vedar,
porque fora para isso necessário dissolver e proibir a sociedade.”4
A Constituição, em posição contrária ao Marco Civil, adotou a liberdade de manifestação do pensamento em
detrimento à liberdade de expressão. Nesse sentido, o art. 5o, inc. IV, da CF garante a liberdade de manifestação do
pensamento, “sendo vedado o anonimato”. No art. 220, a Constituição determina que a “manifestação do pensamento,
a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição,
observado o disposto nesta Constituição”.
Não é somente a Constituição Federal que adotou esse conceito. A Convenção Americana de Direitos Humanos
estipulou, em seu art. 13:
“Artigo 13 – Liberdade de pensamento e de expressão
1. Toda pessoa tem o direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito inclui a liberdade de procurar, receber e difundir informações e ideias
de qualquer natureza, sem considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer meio de sua
escolha.”
Diante dessa consolidação constitucional do termo manifestação de pensamento, em que a liberdade de
expressão é seu aspecto externo, nota-se que o legislador do Marco Civil, ao adotar os termos da Constituição, não a
interpretou nas suas intenções e conteúdos dogmáticos, o que pode trazer confusões ao se interpretar o princípio da
liberdade de manifestação do pensamento e de expressão na internet.
Outrossim, a liberdade de manifestação do pensamento tem como pressuposto o desenvolvimento dos direitos de
personalidade, a fim de promover a livre circulação de ideias e o fortalecimento do Estado Democrático e Social de
Direito. Somente com a liberdade de manifestação de pensamento assegurada é que se pode implementar outras
garantias constitucionais e reafirmar a dignidade da pessoa humana. Contudo, a liberdade de manifestação de
pensamento não é absoluta e tem os seus limites impostos por outras garantias.
Limites à Liberdade de Manifestação de Pensamento. A Convenção Americana de Direitos Humanos
apresenta nos incisos do art. 13, inc. 2 a 5, as molduras dos limites da liberdade manifestação do pensamento5 em que
determina o seu sentido não absoluto.
A liberdade de manifestação de pensamento somente poderá ser exercida desde que respeite os direitos e
reputação das demais pessoas, a segurança nacional, a ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas, que não faça
propaganda a favor da guerra, incite ao ódio nacional, racial ou religioso, discriminando e incitando ao crime e à
violência.
Contudo, tal elenco de restrições impostas pela Convenção Americana de Direitos Humanos não podem ser
assumidas também como absolutos. Conceitos como reputação, segurança nacional, ordem e moral pública são muito
indeterminados e amplos para serem realmente critérios efetivos para a implementação das restrições ao direito de
liberdade de manifestação de pensamento. Governos não democráticos e ditatoriais diuturnamente utilizam-se dos
critérios de segurança nacional, ordem e moral pública para imporem censuras e cerceamento da liberdade de
manifestação do pensamento de forma abusiva.
A fim de diminuir a subjetividade de critérios tão amplos e incertos, Luís Roberto Barroso estipulou oito critérios
de análise se há liberdade de manifestação de pensamento exercida nos limites constitucionais e da dignidade da
pessoa humana.6 Toda a liberdade de manifestação de pensamento tem que adotar os seguintes parâmetros:
a)fatos verdadeiros: a informação que goza de proteção constitucional é informação verdadeira;
b)licitude do meio empregado na obtenção da informação: a Constituição veda obtenção de provas, conhecimentos ou informações que sejam obtidas por meios
ilícitos. A liberdade de manifestação de pensamento não pode ser exercida por meio de um crime;
c)personalidade pública ou estritamente privada da pessoa objeto da notícia: as pessoas que ocupam cargos públicos têm o seu direito de privacidade tutelado em
intensidade mais branda, mas não quer dizer a sua supressão;
d)local do fato: os fatos ocorridos em local reservado têm proteção mais ampla do que os acontecidos em locais públicos;
e)natureza do fato: há fatos que são notícia (tremor de terra, terremoto, enchente), independentemente dos personagens envolvidos, mesmo quando exponham a
intimidade, a honra ou a imagem de pessoas neles envolvidos;
f)existência de interesse público na divulgação em tese: o interesse público na divulgação de qualquer fato verdadeiro se presume, desde que haja um interesse privado
excepcional;
g)preferência por sanções a posteriori, que não envolvam a proibição prévia da divulgação: que seja implementado o direito à liberdade de manifestação do
pensamento e, se utilizado abusivamente, sanciona--se com responsabilização civil ou penal de quem agiu ilicitamente. Sanções a posteriori somente serão aplicadas desde
que da divulgação da liberdade de manifestação do pensamento acarrete um dano irreparável, tal como a divulgação de uma doença congênita muito pessoal.
Com esses parâmetros é possível delinear caso a caso como explorar o direito à liberdade de manifestação de
pensamento sem invadir direitos alheios, permeando possibilidades de aplicações práticas. E, quando houver dúvidas,
preferir sempre a liberdade em detrimento da censura prévia.
Liberdade de Comunicação. Para José Afonso da Silva, a “liberdade de comunicação consiste num conjunto de
direitos, formas, processos e veículos, que possibilitam a coordenação desembaraçada da criação, expressão e difusão
do pensamento e da informação”.7 A internet é um veículo de comunicação bidirecional em que se comunica e se
informa automaticamente. Assim, o ato de se comunicar na internet, diferentemente das outras mídias, é também um
direito de se manifestar o pensamento. Assim, trazer o direito de comunicação na disciplina na internet é uma
tautologia morfológica com o direito à manifestação do pensamento.
Proibição de Censura Prévia. A liberdade de manifestação de pensamento é reforçada a todo tempo no Marco
Civil numa luta diuturna contra a censura prévia de conteúdos na internet. Tanto isso é recorrente que o art. 19 do
Marco Civil delineia essa opção de lutar contra a censura prévia (“com o intuito de assegurar a liberdade de expressão
e impedir a censura”).
A censura prévia ocorre quando alguém, direta ou indiretamente, obsta, impede, exclui, opõe-se
injustificadamente, fora das exceções constitucionais, à publicação de conteúdo, informação ou conhecimento, de
áudio, vídeo ou texto, em determinada página de internet.
Contudo, a censura prévia em termos de internet não é somente uma questão de direitos e sim também de
técnica, a qual o próprio Marco Civil reconhece nas questões de neutralidade de rede,8 em que a forma como a internet
funciona e se desenvolve realiza por si só discriminações de conteúdos antes mesmo de serem publicados,
independentemente da vontade de quem os publica. São inúmeros casos que os sites direcionam conteúdos para
determinados usuários geograficamente localizados, ou seja, uma pessoa de São Paulo pode ver o conteúdo e outra do
Rio de Janeiro não. O Google tem diversas regras de relevância de conteúdo e que acabam por esconder outros, as
quais os usuários nunca tenham acesso. Isso é uma forma de censura prévia indireta e que é coibida pelo art. 13.3 da
Convenção Americana de Direitos Humanos:
“Não se pode restringir o direito de expressão por vias e meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de
frequências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a
comunicação e a circulação de ideias e opiniões.” (grifo do autor)
A censura prévia tecnológica na internet, que foi ignorada pelo Marco Civil, ocorre em dois momentos: por meio
de quem controla o código fonte dos softwares, no caso os provedores de aplicação de internet; e por quem controla a
infraestrutura de telecomunicações.
Em citação mais do que famosa, Lawrence Lessig dizia que o código é a lei (code is law). Ou seja, quem
controla a programação e o desenvolvimento dos softwares consegue determinar a forma, os fluxos e os conteúdos da
informação (dados) trafegados em determinado sistema. Os sistemas de buscas atuais escalonam as informações que
mais se aderem ao seu comportamento na internet. A timeline do Facebook é construída com base nas pessoas que
você curte e com quem interage mais. As buscas do Google também. Assim, um conteúdo, que poderia ser de seu
interesse, não é selecionado por conta desses direcionamentos que selecionam diuturnamente aqueles que lhe são, na
opinião das empresas que detém o controle do código, interessantes. O Twitter, que ainda respeita a ordem
cronológica das publicações, já vai começar a mostrar uma timeline de relevância para o usuário.9 Assim, conforme o
art. 13.3 da Convenção Americana de Direitos Humanos, que tem força material e formal de lei
constitucional,10 determina que esses subterfúgios “destinados a obstar a comunicação e a circulação de ideias e
opiniões”, caracterizam censura prévia e deverão ser considerados afrontas ao direito de liberdade de manifestação de
pensamento.
Permissão da Censura Prévia. A permissão da censura prévia só pode ser feita nos casos em que estejam
envolvidos direitos de crianças e adolescentes (art. 13.4 da Convenção Americana de Direitos Humanos) e quando
houver discurso de ódio contra raças, religiões, a favor da guerra e ódio nacional (art. 13.5 da CADH), discurso
homofóbicos e pornografia de vingança. A permissão da censura prévia deve estar atrelada à algum crime que atente
contra a dignidade da pessoa humana.
A dignidade da pessoa humana, para Ingo Sarlet,11 é
“a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade,
implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que asseguram a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante
e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa
e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos”.
Com relação aos conteúdos na internet, esses discursos de ódio e de intolerância racial, sexual e religiosa afetam
sobremaneira e indelevelmente a personalidade dos desqualificados pelas agressões, não podendo ser admitidos já que
a indenização não restituirá a dignidade humana vilipendiada.
Inciso II
Proteção da Privacidade. Vasta bibliografia nacional e internacional já discorreu sobre a privacidade e sua
proteção na internet.12 Muitos foram os caminhos para definir a proteção da privacidade em tempos de internet. A
despeito de toda a pluralidade de questões e problemas apresentados nesta vasta doutrina, a proteção da privacidade,
na perspectiva do Marco Civil, torna-se problemática e indefinida sem enfrentar todos os problemas devidos.
A privacidade é assegurada pelo art. 12 da Declaração Universal dos Direitos Humanos:
“Ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação.
Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques.”13
A Constituição Federal brasileira seguiu na mesma linha da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do
Cidadão e definiu abrangentemente a privacidade, englobando todas as manifestações da esfera íntima, privada e da
personalidade. A privacidade relaciona-se ao “conjunto de informação acerca do indivíduo que ele pode decidir
manter sob seu exclusivo controle, ou comunicar, decidindo a quem, quando, onde em que condições, sem a isso
poder ser legalmente sujeito”.14 A inviolabilidade abrange “o modo de vida doméstico, nas relações familiares e
afetivas em geral, fatos, hábitos, local, nome, imagem, pensamentos, segredos, e, bem assim, as origens e planos
futuros do indivíduo”.15
Mesmo diante desta abrangência do conceito de privacidade, constitucionalmente referida no caput deste artigo,
o Marco Civil decidiu separar a privacidade de proteção de dados pessoais. Conceitos esses que, em tempos de
tecnologias de informação e comunicação, são conexos e altamente interligados, pois todas as proteções e ferramentas
de ação para a defesa da privacidade nada mais são do que dados pessoais. Teoricamente, tal divisão de proteção à
privacidade da proteção dos dados pessoais são constitucionalmente insustentáveis.
Essa separação foi baseada na Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, o que é problemática em
termos de Brasil, já que ainda não possuímos uma lei de proteção de dados pessoais e que nascerá sob inúmeros
desafios trazidos pelo Marco Civil, principalmente sobre as questões relacionadas às guardas de logs e o que são dados
sensíveis ou não. Se pensarmos na Diretiva Europeia de Proteção dos Dados Pessoais, alguns artigos do Marco Civil
deverão ser alterados. Qual é o objetivo de se construir tais soluções que são provisórias e passageiras e que versam
sobre direitos fundamentais?
Em razão dessa perspectiva constitucional, a proteção da privacidade coloca-se como ampliativa de direitos e
garantias aos cidadãos. Contudo, o Marco Civil, nos demais artigos que versam sobre a proteção da privacidade (arts.
7o, 9, 10, 11, 12, 15, 19, 21 e 23), não enfrenta vários aspectos dos modelos de negócios tanto das empresas de
telecomunicações quanto dos provedores de aplicações de internet que, com o big data,16 utilizam-se diuturnamente da
privacidade, intimidade, honra, segredos, hábitos e pensamentos para vender serviços e ganhar dinheiro. Nesse
sentido, Renato Leite Monteiro aponta:
“Infelizmente, o registro e a guarda de logs de acesso à internet e de navegação dos usuários ainda são necessários. Essa afirmação é uma realidade
principalmente para as empresas que provêm serviços de aplicação na grande rede por um grande e importante motivo: o modelo de negócio sob o qual
elas estão baseadas depende quase que exclusivamente da monetização de dados dos seus usuários. Dados estes que na sua maioria são pessoais. Uma vez
que a receita das empresas se origina principalmente da publicidade oferecida através de suas plataformas, e a eficiência dessas propagandas está
diretamente ligada à análise do comportamento dos usuários, caso estas empresas não coletassem dados, elas simplesmente não existiriam. Podemos,
portanto, partir de uma premissa: com regulação estatal ou não, dados continuarão a ser coletados e armazenados, pois o atual modelo de negócio das
empresas de internet depende dessa prática.”
Discordo de Renato Leite Monteiro somente no tocante ao fato de a regulação não fazer diferença alguma na
coleta ou armazenamento no funcionamento das empresas. Esse é um problema do Marco Civil. Ele não enfrenta ou
questiona os modelos de negócios da internet atualmente postos. Não há outros modelos de negócio possíveis sem a
coleta indiscriminada e abusiva de dados pessoais e sensíveis? Se tem, o Marco Civil não apresentou caminhos para
essa proteção da privacidade com implementação de novos negócios na internet. E o Marco Civil deveria apresentar,
já que os dados pessoais, conectados que estão ao direito à privacidade, intimidade, honra, sigilo de correspondência e
outros direitos fundamentais, não podem ser renunciados ou delegados a terceiro nem mesmo com autorização.
Inciso III
Proteção de Dados Pessoais, na forma da lei. A falta de projeto ou ideia fundamental para a internet no Brasil
é tão patente que o Marco Civil, ao separar a proteção de dados pessoais de privacidade, o que é equivocado, deixou à
mingua os usuários cidadãos que deveria proteger. Proteção da privacidade sem dados pessoais regulamentada ou
definida a priori é deixar direitos fundamentais dos cidadãos à mercê de quem tem o controle dos códigos e da
infraestrutura de telecomunicações.
A proteção dos dados pessoais pode ser implementada pelo conjunto de lei constitucionais17 e
infraconstitucionais18 que já estão no sistema jurídico. Cláudia Lima Marques, sobre esse assunto, já escreveu:
“Quanto ao banco de dados sobre o endividamento (hábitos de consumo e pagamento) dos consumidores, são estes também de vários tipos, hoje
potencializados com a internet, a tecnologia das redes, de intranets, de grupos de discussão etc., mas a todos devemos aplicar as regras do CDC (assim a
ADIn 1790-5/DF), porque essencialmente e acessoriamente ligados ao consumo (art. 43 ss do CDC), e os princípios de proteção da privacidade (art. 5o, X,
da CF/88 c/c Lei Complementar 105/2001, sobre sigilo bancário), do direito de acesso, direito de retificação e direito de complementação de suas
informações (art. 5o, XIV e XXXIII, da CF/88 c/c Lei 9.507/97, sobre habeas data), da defesa da dignidade da pessoa humana (art. 1o, III, da CF/88) e da
proteção especial do consumidor (art. 5o, XXXII, da CF/88) e agente econômico com direitos de personalidade (art. 170, V, da CF/88 e Súmula 227 do
STJ). Como ensina o STF: ‘Os arquivos de consumo são um dado inextirpável da economia fundada em relações massificadas de crédito.’ (Ementário
3, in fine, ADIn 1790-5/DF).”19
O Marco Civil se coloca como legislação de defesa dos usuários, mas não aponta os caminhos necessários para a
implementação dos direitos e deveres que transcreve. O legislador esqueceu-se de uma ferramenta constitucional
muito importante e pouco utilizada para a proteção e garantia dos dados pessoais, que é a do habeas data,20 que garante
o acesso a banco de dados e informações relativas às pessoas. Para a lei que regulamenta o habeas data (Lei
no 9.507/97) considera-se “de caráter público todo registro ou banco de dados contendo informações que sejam ou que
possam ser transmitidas a terceiros ou que não sejam de uso privativo do órgão ou entidade produtora ou depositária
das informações”. Assim, a proteção dos dados pessoais, que possui um projeto de lei há anos tramitando no
Congresso, sem definição de seu conteúdo e quando será promulgada, não depende dessa lei. Tal supletivo desse
inciso, “na forma da lei”, é desnecessário e ignora todo o sistema jurídico de proteção já existente.
Inciso IV
Preservação e garantia da neutralidade de rede. Sobre neutralidade de rede, será discorrido com mais
profundidade o tema na análise do art. 9o deste Marco Civil. Mas algo que se deve ressaltar, no tocante à neutralidade
de rede, é o seu aspecto de princípio técnico de proteção da privacidade e dos dados pessoais. A neutralidade de rede
visa impedir que, por meio de subterfúgios e artimanhas tecnológicas, possam os provedores de acesso à internet,
empresas de telecomunicações e provedores de aplicações de internet terem controle indevido sobre os dados pessoais
dos usuários que possam influenciar no seu ir e vir virtual, nas escolhas que faz, nos conteúdos que acessam e nas
informações e conhecimento que recebem e produzem. A neutralidade da rede está interligada com direitos
fundamentais à igualdade, à privacidade e à inclusão digital, pois sem este princípio técnico inviabiliza-se o acesso
igualitário dos usuários à internet e aos usos que as empresas de telecomunicações e provedores de aplicações de
internet fazem com as informações amealhadas, monitoradas e analisadas, as quais se apropriam para obstruir
caminhos, analisar conteúdos e impedir acessos.
Inciso V
Preservação da estabilidade, segurança e funcionalidade da rede de quem? E para quem? Alguns incisos e
artigos do Marco Civil tentam estabelecer requisitos técnicos do funcionamento da internet, mas não enfrentam as
questões diretamente e nos pontos que poderiam fazer a diferença. Esse inciso é um exemplo desses problemas. O que
seria preservação da estabilidade, segurança e funcionalidade da rede? A quem se direciona esse inciso? Direciona-se
às empresas de telecomunicações, aos provedores de acesso à internet, à entidade reguladora, à Anatel, aos provedores
de aplicações de internet? E, por outro lado, que implantará as medidas técnicas compatíveis com os padrões
internacionais e as boas práticas? Direciona-se a quem esse mandamento?
Preservação da Estabilidade. Numa tentativa de interpretar esse inciso, o legislador deveria estar pensando nos
provedores de acesso à internet e nas empresas de telecomunicações que mantém infraestrutura necessária para o
tráfego de dados. A preservação da estabilidade, nesse sentido, estaria interligada à neutralidade da rede, pois não
poderia ser degradada a velocidade dos serviços de conexão. Nem muito menos o acesso à internet poderia ser
interrompido abruptamente sem aviso anterior, conforme contrato, ou justificativa técnica de força maior ou caso
fortuito.
Em muitos casos de concorrência desleal em infraestrutura de internet, a empresa de telecomunicações que se
encontra em posição dominante, por ter e fornecer as conexões físicas dos usuários, derruba a conexão de internet por
muito tempo, a fim de amealhar o cliente de um provedor de conexões à internet, que lhe contrata os serviços.21
Sobre a preservação da estabilidade, outro ponto deve ser colocado. Não raro, os provedores de acesso à internet,
principalmente nos serviços de 3G e 4G, limitam o tráfego de dados dos usuários e bloqueiam os acessos sem
quaisquer informações transparentes sobre como avaliaram o consumo de dados e se realmente os dados foram
consumidos. Muitas vezes, os usuários, sem quaisquer proteções contra invasões de hackers ou crackers, acabam
consumindo dados que não foram pretendidos e, mesmo assim, a sua conexão é interrompida ou restringida. Os
usuários estão duplamente atingidos: pela falta de proteção das redes, pagam mais pelo acesso que consomem e pelo
que não consomem; e têm a sua conexão interrompida e bloqueada por isso. Recentemente, o PROCON/SP conseguiu
uma liminar na justiça para impedir o bloqueio do acesso à internet aos celulares que ultrapassaram o limite do tráfego
de dados.22
A questão da preservação da estabilidade passa por questões que estão inseridas na Lei Geral de
Telecomunicações, que não foi sequer questionada no Marco Civil. O não enfrentamento dessa problemática relação
entre empresas de telecomunicações e a internet é um dos pontos fracos do Marco Civil, que permite práticas
comerciais abusivas contra os usuários que estão totalmente desprotegidos, por sua ignorância técnica e jurídica, do
quadro regulatório.
Segurança e funcionalidade de rede. O usuário de internet não está somente desprotegido juridicamente, mas,
em grande parte, tecnicamente. O Marco Civil enunciou uma profusão de direitos, a maioria garantidos
constitucionalmente, mas não apontou os mecanismos técnicos para o enfrentamento das exclusões, oposições e
obstáculos produzidos nas tecnologias de informação e comunicação.
Conforme dito anteriormente, os usuários estão totalmente desprotegidos e acabam sem estabilidade de conexão
prometida em contrato e no Marco Civil, pois não há segurança das redes de telecomunicações necessária para
garantir aos usuários sua proteção de ataques de hackers e crackers.
A única regulamentação sobre segurança de rede foi dada pela Norma no 4/95 emitida pelo Ministério das
Comunicações em conjunto com Ministério da Ciência e Tecnologia, que em seu art. 4.123 determina aos provedores de
conexão à internet a responsabilidade pelos “mecanismos de controle de segurança e outros” dos usuários. Essa norma
foi emitida numa época de conexão discada (dial up), contudo, na banda larga, ela foi, mesmo relevante e válida
tecnicamente, esquecida e jamais atendida pelos órgãos reguladores e Poder Judiciário.24
Assim, os usuários estão totalmente jogados à sua ignorância técnica e, principalmente, à mercê das práticas
abusivas por parte das empresas de telecomunicações, que somente fornecem 10% da velocidade contratada, limitam o
tráfego de dados e, até recentemente, obrigavam a contratação de provedor de acesso à internet, quando, de fato, elas
mesmas faziam este serviço.25
Diante dessas situações práticas, o Marco Civil não está apresentando soluções a essas intervenções que
diminuem e restringem os direitos e garantias constitucionais dos usuários e os mantêm reféns de práticas comerciais e
tecnológicas que tornam totalmente inseguras as suas navegações, troca de informação, dados pessoais e privacidade.
Inciso VI
Responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades. As críticas feitas anteriormente devem ser
repartidas com esse inciso. Quais são os agentes de que fala esse inciso VI do Marco Civil? Agentes de
telecomunicações? Usuários de internet? Funcionários das empresas de provedor de conexão e de aplicações de
internet? Agentes estatais? Enfim, a quem se destina esse inciso? Quem definirá a cadeia de responsabilização em uma
empresa gigantesca como o Google, a Microsoft ou o Yahoo? Assim, responsabilizar os agentes com as suas
atividades poderia ser melhor definido e escalonado. Um funcionário que cumpre ordens e políticas de segurança de
informação não pode ser responsabilizado por padrões técnicos de boas práticas. Mas, ao mesmo tempo, quem
regulará e regulamentará esta cadeia de responsabilização? A falta de critérios definidos sobre quais são os órgãos
reguladores, como deve ser o procedimento de guarda de logs, como se dará a proteção dos dados pessoais, enfim,
uma série de questões abertas no Marco Civil, impedem um aprofundamento e entendimento deste inciso.
Inciso VII
Preservação da natureza participativa da rede. Por compreensão historicamente construída e tecnológica, já
que o conceito de rede desse inciso é totalmente inexplicado no Marco Civil e no sistema jurídico brasileiro, o
qual deveria fazer referência, depreende-se que a internet diferentemente de outras mídias (rádio e televisão), possui
como uma das características a bilateralidade, ou seja, o produtor e o receptor da informação podem interagir,
compartilhar e produzir conteúdos. Na internet, os usuários são participantes ativos da comunicação, ao passo que são
passivos em outras mídias.
O Marco Civil quis reforçar essa natureza, mas não andou bem nesse sentido. Por que uma lei tem que reforçar
uma característica que a própria técnica já implementa? Qual é a razão de se reforçar essa ideia que não é um valor em
si? Até porque a internet, em alguns momentos, por conta de quem possui o código, não é participativa e sim
restritiva, principalmente em alguns casos que envolvem direitos autorais. Aliás, direitos autorais, conforme art. 31 do
Marco Civil, são regulados pela lei própria. Como reforçar esta ideia se o próprio Marco Civil a exclui de pronto?
Assim, esse inciso não implementa direitos, não cria novos e não resolve as questões que são necessárias para a
construção da internet no país. E, mais uma vez, pretende-se impor um argumento técnico como valor, o que não é a
melhor forma de se legislar sobre disciplina do uso da internet no Brasil.
Inciso VIII
Liberdade dos modelos de negócios promovidos na internet. O Marco Civil determina como disciplina do uso
da internet no Brasil a liberdade dos modelos de negócios promovidos na internet, desde que eles respeitem os direitos
humanos fundamentais e os mercados regulamentados por lei.
Assim, não podem criar negócios de internet que instituam tratamento indigno, venda de dados pessoais de
usuários, comercializem prostituição adulta ou infantil etc. Também é proibido modelo de negócio que atue em
mercados regulamentados sem a previsão legal, tal como, por exemplo, o crowdfunding,26 que institui um
financiamento coletivo emulando um tipo de mercado de ações. Nos EUA, o crowdfunding funciona diferentemente
do que no Brasil. Nos EUA, o sistema é muito parecido com mercado de ações onde o investidor compra participação
na empresa. No Brasil, o investidor ganha serviços em troca do investimento. Isso ocorre porque o mercado de ações é
controlado pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), que até agora exige das startups27 o preenchimento de
requisitos para ingressar no mercado de ações, o que inviabiliza o próprio conceito de startup.
O Marco Civil, diante das obstruções e práticas diárias da instituição de modelos de negócios inovadores, acabou
por descurar de um cuidado mais atento sobre as startups realmente inovadoras, que acabam por desafiar estruturas
estabelecidas e mercados regulamentados. Como pode a CVM entender ou compreender as inovações impostas por
modelos de negócios tal como o crowdfunding? Dessa maneira, o Marco Civil poderia encaminhar o impulsionamento
desses modelos de negócios sem desrespeitar as regras constitucionais e infraconstitucionais. Contudo, mais uma
oportunidade se perdeu para se construir um caminho de fomento à inovação pelas tecnologias de informação e
comunicação.
Parágrafo único
Os princípios relacionados à matéria. No mesmo sentido dos outros artigos, o Marco Civil gasta tinta demais
para descrever um conceito que está inserido no conceito de sistema jurídico de que, em casos de lacunas e omissões
da lei especial, serão utilizados os princípios gerais do direito, a analogia e os costumes como forma de ampliar
extensivamente os direitos protegidos e garantidos nesta lei. Tal interpretação decorre do art. 4o da Lei de Introdução
às normas do Direito Brasileiro. (“Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os
costumes e os princípios gerais de direito”) e não necessitaria de mais uma norma para explicitar o mesmo
ordenamento.
Tratados internacionais em que o Brasil seja parte. Em relação aos tratados internacionais, para se tornarem
válidos no Brasil, além de serem assinados pelo Poder Executivo brasileiro, eles precisam ser interiorizados para o
ordenamento jurídico.28 Os tratados internacionais de direitos humanos, quando internalizados, têm o mesmo valor
interpretativo de emenda constitucional, conforme o art. 5o, § 3o, da CF 1988: “Os tratados e convenções internacionais
sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos
dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.”
II – JURISPRUDÊNCIA
“ELEIÇÕES 2014. RECURSO. INTERNET. BLOG PESSOAL. PESSOA FÍSICA. POSTAGENS.
SUPOSTAMENTE DIFAMATÓRIAS E CALUNIOSAS. OFENSA DIRETA A CANDIDATO DO
EXECUTIVO ESTADUAL. NÃO CONFIGURADA. CRÍTICA A ADMINISTRAÇÃO CONTUDENTE.
POSSIBILIDADE. RIGOR MITIGADO NAS REDES SOCIAIS PRIMÁRIAS E BLOGS PESSOAIS.
POLÍTICA DE INTEREVENÇÃO MÍNIMA DA JUSTIÇA ELEITORAL. LIBERDADE DE EXPRESSÃO,
COMUNICAÇÃO E MANIFESTAÇÃO DE PENSAMENTO (ART. 3o, I, DA LEI No 12.965/2014 –
MARCO CIVIL DA INTERNET). DESPROVIMENTO. Não se pode pressupor a existência de um pleito
eleitoral harmonioso, em ambiente completamente asséptico, caracterizado por linguagem elegante,
com troca de gentilezas entre os adversários e no qual os candidatos possam apresentar suas ideias
e propostas completamente imunes a qualquer crítica. É preciso prestigiar a liberdade de crítica,
dosando adequadamente a intervenção da Justiça Eleitoral a cada caso judicializado, para manter o
pleito livre de influências que efetivamente possam ocasionar o desequilíbrio entre os candidatos. É
tênue a linha do equilíbrio entre a intervenção judicial e a censura nas eleições, que pode ser nociva à
democracia na exata medida em que se corre o risco de cercear o livre exercício da crítica válida,
espécie do gênero liberdade de expressão, garantia individual e coletiva amplamente consagrada na
Constituição Federal de 1988 (Ac. TRESC n. 29.608/2014).” (TRE-SC, Recurso em Representação
no 78936, Acórdão n° 29951, de 18-8-2014, da relatoria do juiz Fernando Vieira Luiz, publicado em
sessão de 18-8-2014). Recurso desprovido. (TRE-PB - RP: 148524 PB , Relator: JOSÉ GUEDES
CAVALCANTI NETO, Data de Julgamento: 29-9-2014, Data de Publicação: PSESS – Publicado em
Sessão, Volume 19:27, Data 29-9-2014)




Trecho retirado do livro Marco Civil da Internet Comentado de Victor Hugo Pereira Gonçalves
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